quarta-feira, 25 de abril de 2007

"Flanar montado em bolhas de sabão. Robotização kafkiana. O pseudo. O nada. O prestígio. O signo. A representação. "

Abaixo, texto de Rogério Duprat de Início dos anos 70, publicado em Bondinho. O original à disposição do Comunhão do cão está em condições precárias. Processo de recuperação em andamento. Enquanto isso, leia esta representação abaixo. Mais um gênio da música brasileira que pensou, e muito bem, questões capitais da comunicação na era do capitalismo tardio.



ATENDENDO A INSISTENTES PEDIDOS DE PARENTES E AMIGOS,
DA IMPRENSA EM GERAL, O MAESTRO ROGÉRIO DUPRAT
VEM A PÚBLICO, INSINUANTE E CONTESTADOR, FALAZ E
INCISIVO, PARA DECLARAR A QUANTOS POSSA INTERESSAR
QUE ELE NADA TEM A DIZER ALÉM DO JÁ DITO.


Única atitude realmente radical seria suspender toda a atividade ao nível da representação: o espetáculo, a obra de arte ou de não-arte, a TV, o livro, o objeto de consumo, o status, a propaganda, o disco, a poesia, a venda, o filme, a cultura, o carro, a teoria, a imprensa, a música, a estrutura, todas as linguagens e toda a comunicação.
Todo o papo pop e contestativo foi ainda operação ao nível da representação, da imagem, do que aquele americano (?) chama de “pseudo-evento”.
Toda sociedade, primitiva ou não, viveu do ícone, do totem, que a cultura pop simplesmente maximizou criando uma sorte de pantotemismo. A chamada vanguarda e os teóricos da comunicação se encantaram com o signo, construindo uma pan-representação: o happening. A jogada dos artistas americanos – arte brinquedo de adulto – e o mesmo papo. A antropofagia (canibal mesmo ou teórico-oswaldiana): ingerir com o deglutido suas qualidades e virtudes, ou ainda eliminar os próprios pecados, defeitos e tabus. A aldeia maclunática, a loucura d automação, que pintava levar ao velho ideal do lazer e do ócio, só alterou as “áreas de representação”. Das antigas às novas religiões, do ícone concreto ao misti-semantismo.
A representação é a imagem, o pseudo-evento, a coisa da coisa, e a coisa.da.coisa.da.coisa, a imagem da imagem do evento, o signo do signo, encantamento pavlóvico das sociedades consumísticas ou não. Nesse mundo da representação, os sistemas acenam com a sedução do tópico: o artista, o gênio, a teoria, o barato, o cantor, a erva, o dinheiro, o livro etc...
operando em torno de topicidades, numa “aliança para o sucesso pela liquidação do típico”. Não basta constatar o pseudo-evento como pan-cultura: é preciso escapar dele, eliminar a representação, dar fim ao paradigma, que é a imagem-modelo, lead-behaviour, protótipo, e só pensar e viver o evento, a coisa, aquilo que a filosofia toda chamou de noesis, essências, sei lá mais o quê. As fossas são buscas frustradas de novas formas de representação (louca corrida atrás do novo). Os “artistas” se recusam a invadir o típico e a se confundir com ele: querem ainda ser tópicos, franksinatras e maotsetungs. O ídolo, o topo, o paradigma que alimenta o sistema e dele se alimenta. O sistema procura manter viva a idéia de representação e de que o sucesso está aberto a todos, transformando no processo qualquer anticódigo em novo código, jogando com o tato de que o próprio status de “gênio” é um pseudo-evento. É até possível imaginar-se um gênio frio, inventado, cuja existência acaba sendo legitimada pela zorra e pela imageria literária dos pasquins. O grupo OEL começou um treco desse tipo com um nome inventa – Loefgreen –, que sabia de todas as coisas e que já estava começando a ter certo sucesso... As citações não projeções grupais no sistema através de um tópico, de um pseudo-evento.
Tudo porque o único ato típico (evento) é a sobrevivência, e com ela o trabalho. Para isso, as sociedades construíram enormes edifícios-image (um macro semiótica), que é praticamente no que e para que vive o homem de hoje. Brucutu já era tópico: meia dúzia dos que se consideram mais aptos tomam o poder e cavalgam milhões de “mentecaptos”, salvando-se à base de manter viva a imagem, a representação, o código. A lei é o código máximo, a opressão.
Representar para não presentar. Signi-ficar para não eventuar. Sintatizar para não semantizar.
Estruturar para não realizar. Imagem contra objeto.
Manter-se no topo (ser tópico) exige desprezar o típico e os signos que lhe correspondem, que o representam. Os novos arautos da contracultura, engalanados com os aparatos, dizendo-se “marginalizados do sistema”, mas espreitando-lhe as brechas (talentosa e sub-repticiamente “esquecidas”, abertas pelo próprio sistema) que conduzem ao sucesso na cultura, na arte, no jornalismo, etc. E esse desprezo ao típico, ao trabalho, se evidencia na rejeição de signos que se tipificam no uso geral de office-boys da rua 15 ou das meninas da Mooca, e que recebem logo de vanguardeiros os nomes de careta, cafono, por aí afora.
A maior tristeza é a invasão da representação, da imagem, na área do trabalho: milhões sobrevivem base de ofícios pseudo-eventuais, que não existem: professores, corretores, motoristas, artistas, políticos, psicologistas, soldados, jornalistas, burocratas, juristas, espiões, etc., tudo, enfim, que serve para organizar, exigir ou iludir a aplicação dos códigos. Essa é a terrível imposição: compelir a maioria da humanidade a operar ao nível do código, daquilo que seria só uma forma de disciplinar o comportamento coletivo, e que acaba por se tornar a própria razão da existência do indivíduo e da sociedade. Flanar montado em bolhas de sabão. Robotização kafkiana. O pseudo. O nada. O prestígio. O signo. A representação. O chato é que, em cada caso, o fascínio do paradigma está lá, para tentação dos pretendendes-aprendizes-candidatos a topo. Por simples e elementar comparação, optar pela grande vida do prestígio e do sucesso é mais cômodo... A gênesis já dizia que no princípio era o verbo.

Rogério Duprat
5.4.72

Nenhum comentário:

Um excelente mote para reflexões acerca dos temas comunicação e comunhão está na canção Sunshine de Arnaldo Baptista, transcrita, logo abaixo, em uma das postagens que figuram neste blog.

Se aproveitam

Se aproveitam
Gravura de Goya onde figuram os famosos saques feitos, pelos vencedores, após as batalhas.