Abaixo, texto de Rogério Duprat de Início dos anos 70, publicado em Bondinho. O original à disposição do Comunhão do cão está em condições precárias. Processo de recuperação em andamento. Enquanto isso, leia esta representação abaixo. Mais um gênio da música brasileira que pensou, e muito bem, questões capitais da comunicação na era do capitalismo tardio.
ATENDENDO A INSISTENTES PEDIDOS DE PARENTES E AMIGOS,
DA IMPRENSA EM GERAL, O MAESTRO ROGÉRIO DUPRAT
VEM A PÚBLICO, INSINUANTE E CONTESTADOR, FALAZ E
INCISIVO, PARA DECLARAR A QUANTOS POSSA INTERESSAR
QUE ELE NADA TEM A DIZER ALÉM DO JÁ DITO.
Única atitude realmente radical seria suspender toda a atividade ao nível da representação: o espetáculo, a obra de arte ou de não-arte, a TV, o livro, o objeto de consumo, o status, a propaganda, o disco, a poesia, a venda, o filme, a cultura, o carro, a teoria, a imprensa, a música, a estrutura, todas as linguagens e toda a comunicação.
Todo o papo pop e contestativo foi ainda operação ao nível da representação, da imagem, do que aquele americano (?) chama de “pseudo-evento”.
Toda sociedade, primitiva ou não, viveu do ícone, do totem, que a cultura pop simplesmente maximizou criando uma sorte de pantotemismo. A chamada vanguarda e os teóricos da comunicação se encantaram com o signo, construindo uma pan-representação: o happening. A jogada dos artistas americanos – arte brinquedo de adulto – e o mesmo papo. A antropofagia (canibal mesmo ou teórico-oswaldiana): ingerir com o deglutido suas qualidades e virtudes, ou ainda eliminar os próprios pecados, defeitos e tabus. A aldeia maclunática, a loucura d automação, que pintava levar ao velho ideal do lazer e do ócio, só alterou as “áreas de representação”. Das antigas às novas religiões, do ícone concreto ao misti-semantismo.
A representação é a imagem, o pseudo-evento, a coisa da coisa, e a coisa.da.coisa.da.coisa, a imagem da imagem do evento, o signo do signo, encantamento pavlóvico das sociedades consumísticas ou não. Nesse mundo da representação, os sistemas acenam com a sedução do tópico: o artista, o gênio, a teoria, o barato, o cantor, a erva, o dinheiro, o livro etc...
operando em torno de topicidades, numa “aliança para o sucesso pela liquidação do típico”. Não basta constatar o pseudo-evento como pan-cultura: é preciso escapar dele, eliminar a representação, dar fim ao paradigma, que é a imagem-modelo, lead-behaviour, protótipo, e só pensar e viver o evento, a coisa, aquilo que a filosofia toda chamou de noesis, essências, sei lá mais o quê. As fossas são buscas frustradas de novas formas de representação (louca corrida atrás do novo). Os “artistas” se recusam a invadir o típico e a se confundir com ele: querem ainda ser tópicos, franksinatras e maotsetungs. O ídolo, o topo, o paradigma que alimenta o sistema e dele se alimenta. O sistema procura manter viva a idéia de representação e de que o sucesso está aberto a todos, transformando no processo qualquer anticódigo em novo código, jogando com o tato de que o próprio status de “gênio” é um pseudo-evento. É até possível imaginar-se um gênio frio, inventado, cuja existência acaba sendo legitimada pela zorra e pela imageria literária dos pasquins. O grupo OEL começou um treco desse tipo com um nome inventa – Loefgreen –, que sabia de todas as coisas e que já estava começando a ter certo sucesso... As citações não projeções grupais no sistema através de um tópico, de um pseudo-evento.
Tudo porque o único ato típico (evento) é a sobrevivência, e com ela o trabalho. Para isso, as sociedades construíram enormes edifícios-image (um macro semiótica), que é praticamente no que e para que vive o homem de hoje. Brucutu já era tópico: meia dúzia dos que se consideram mais aptos tomam o poder e cavalgam milhões de “mentecaptos”, salvando-se à base de manter viva a imagem, a representação, o código. A lei é o código máximo, a opressão.
Representar para não presentar. Signi-ficar para não eventuar. Sintatizar para não semantizar.
Estruturar para não realizar. Imagem contra objeto.
Manter-se no topo (ser tópico) exige desprezar o típico e os signos que lhe correspondem, que o representam. Os novos arautos da contracultura, engalanados com os aparatos, dizendo-se “marginalizados do sistema”, mas espreitando-lhe as brechas (talentosa e sub-repticiamente “esquecidas”, abertas pelo próprio sistema) que conduzem ao sucesso na cultura, na arte, no jornalismo, etc. E esse desprezo ao típico, ao trabalho, se evidencia na rejeição de signos que se tipificam no uso geral de office-boys da rua 15 ou das meninas da Mooca, e que recebem logo de vanguardeiros os nomes de careta, cafono, por aí afora.
A maior tristeza é a invasão da representação, da imagem, na área do trabalho: milhões sobrevivem base de ofícios pseudo-eventuais, que não existem: professores, corretores, motoristas, artistas, políticos, psicologistas, soldados, jornalistas, burocratas, juristas, espiões, etc., tudo, enfim, que serve para organizar, exigir ou iludir a aplicação dos códigos. Essa é a terrível imposição: compelir a maioria da humanidade a operar ao nível do código, daquilo que seria só uma forma de disciplinar o comportamento coletivo, e que acaba por se tornar a própria razão da existência do indivíduo e da sociedade. Flanar montado em bolhas de sabão. Robotização kafkiana. O pseudo. O nada. O prestígio. O signo. A representação. O chato é que, em cada caso, o fascínio do paradigma está lá, para tentação dos pretendendes-aprendizes-candidatos a topo. Por simples e elementar comparação, optar pela grande vida do prestígio e do sucesso é mais cômodo... A gênesis já dizia que no princípio era o verbo.
Rogério Duprat
5.4.72
Nenhum comentário:
Postar um comentário